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Os Deuses-Bicho

há 7 dias

4 min de leitura

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Existem deuses esquecidos e mortos, velhos deuses que eram mais próximos da

natureza e das feras selvácas do que dos humanos. Uma frase, em certa medida,

desconfortável aos ouvidos, seria melhor que tal introdução esvesse em algum conto de

fantasia e não em um ensaio filosófico por ser tão absurda e literária ao primeiro olhar, mas

temo que seja tão real quanto 2+2 é igual a 3, na verdade 4, igual a 4. Permita-me tirar as

farpas dessa questão.


O que fez um simples hominídeo se tornar humano? Ele se viu um dia morrendo. A

ideia, ou melhor, a certeza e a consciência de que um dia ele irá agonizar, dar um suspiro e

morrer. O pavor de se imaginar caído, entregue aos animais carniceiros e virando terra é

trágico até para nós, humanos modernos. Para nossos antepassados, indivíduos cercados por

mortes (quase sempre trágicas ou dolorosas), o desespero de saber que eles podiam ser os

próximos deveria ser uma dilaceração. A história dá um nome boninho a isso: 'processo de

humanização'. Trata-se de um conjunto de novos comportamentos e prácas que nos fizeram diferentes das bestas do bosque, das aves do céu e dos peixes dos rios, explicando aos moldes barrocos, no nosso memento mori nos tornamos integralmente humanos.


Há uma beleza incalculável no fato de que o primeiro indício da transição do Homo

para o humano foi o enterro. Na realidade, qualquer forma de preocupação com os mortos,

enfeitando o corpo do falecido e mantendo seus objetos pessoais no túmulo, cremando-o e

armazenando suas cinzas em jarros em forma de sino, realizando oferendas de comida,

pracando a mumificação—tudo com um único e impressionante propósito: a preocupação

com a vida após a morte. E onde há fumaça, há fogo, onde há a concepção de uma vida após a

morte, há religião. Sim, senhores, se sua mente está afiada, já compreenderam que as religiões

são o primeiro rasgo de nossa humanidade, a agonia de ter que morrer nos fez senr um vazio

do tamanho de Deus. Se morremos, é porque antes esvemos vivos; se vivemos, é porque um

dia nascemos. Então, por que nascemos se inevitavelmente teremos que morrer? Por que

havemos de morrer? Que crime come nascendo? Será que existe criatura que possa nos responder? Com essas perguntas, um deus nascia. Deve haver algo de errado com o sujeito

que não ache isso incrível.


Assim nasceu o Feiceiro de Trois-Frères, uma figura híbrida, intrigante para dizer o

mínimo, de homem e cervo; os touros cultuados pelos Minoicos; o Homem-Leão de

Hohlenstein-Stadel, a primeira figura híbrida animal-humana conhecida; o Feiceiro de Grote

de Gabillou; o Gato Key Marco; e outros infinitos deuses-bichos e espíritos com seus cascos,

chifres, pelos e garras. Os feiceiros, o Sol, a Lua, os touros esculpidos em pedra e as árvores

tornaram-se respostas vindas dos céus e das estrelas, conferindo missão e sendo. O ato de ser humano surge na religiosidade, mais especificamente no animismo, no xamanismo, no culto à natureza e àquilo que vemos como pagão. Esses deuses-feras estavam presente na vida, nos rituais de cura, da colheita e de outras tantas avidades do dia a dia, mas o tempo passou, o humano não queria mais ser criação de um deus, pois passamos a dominar e domescar aquilo que desejávamos, confinando-os nas paredes das cavernas com nta de ocre ou no interior de estatuetas. Aqueles que criamos para aliviar o medo da morte foram, ironicamente, esquecidos por nós. Ingradão humana clássica. Que esses deuses sejam a nossa imagem e semelhança, nasceram assim os deuses-homens.


Éramos agora nova criatura. Crescemos e expandimos nossa mente, o conceito do que envolve ser um humano. Pegamos a madeira bruta de nossas raízes, a lixamos, a moldamos, a esculpimos e, por fim, a envernizamos, o resultado seria nada mais nada menos que o ser civilizado, claro, sua origem até pode ser natural, a madeira, mas sua casca bruta e lascas deformes não nos pertencem mais. Afinal, chega a ser cômico ou bizarro ver seu irmão, uma criatura completamente humana, louvando astros ou animais irracionais. Essa nossa origem já não nos pertence mais. Os deuses-bichos foram trocados pelos deuses-humanos, mas sua função na mente inquieta era a mesma de calar nosso terror existencial.


Hoje, a morte não nos parece tão próxima e constante. As religiões assumem papel

mais pessoal com seus devotos, o conforto está no consolo diante da vida, mais do que diante

da morte, trazendo aspectos mais complexos sobre moralidade e comportamento do que o

quão doce são as pradarias do pós-vida. As promessas de paraíso e danação podem virar

sistema de recompensa, mas ainda são as respostas para nossa curiosidade inata sobre o que ocorre quando os olhos de fecham. Eis o mistério de viver e não saber como é morrer.


Penso, às vezes, que na realidade os deuses-bichos apenas vesram capas humanas e

foram reescritos para as religiões que temos hoje. Guirlandas, danças ao redor da fogueira,

rituais de bênçãos e amuletos nos perseguem e revelam a eterna lembrança dos deuses-bichos

e de que ainda somos grandíssimos pagãos. Não temas, isso não te faz mau cristão, apenas

religiosamente humano.

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