Et In Arcadia Ego
- Maria Fernanda e Sofia Marra - 2ºMC
- 13 de ago.
- 5 min de leitura
No deserto de Sonora, o juiz acabara de esmigalhar a tíbia de antílope quando iniciou o seu discurso sobre a guerra para o seu bando de assassinos de homens. Segundo antes, Jackson contou a Irving:
- “O livro santo diz que aquele que vive pela espada morrerá pela espada.”
A criatura de olhos suínos que era o juiz sorriu — e, claro, por que não estaria certo? Como um homem justo pensaria diferente? Irving ainda questionou como este livro discriminava a guerra se suas páginas estavam banhadas de histórias de sangue. Acontece que a guerra perdura e não se importa com o que o homem pensa sobre ela. E ela ainda era ofício de todo ser humano, ocupação intrínseca da raça.
Isto foi uma simples projeção da cena “O juiz sobre a guerra”, do capítulo 17 de um livro doloso batizado de Meridiano de Sangue, refletida pela a minha máquina de memória. Já fazem 8 meses, 2 semanas e 6 dias deste presente domingo, que estou tentando acabar esse grimório sem objetivo e sem moral de aberrações dos feitos humanos. Os poucos que lograram a proeza de ultrapassá-lo da página 200 e terminá-lo sabem da fama da besta-fera albina — que o livro insiste em chamá-lo de humano — o juiz Holden. Para os que ainda têm o prazer de não o conhecer, eu digo que tal ser vivente é reconhecido como um dos personagens mais cruéis e medonhos que a mente já pôde costurar em páginas, estando no mesmo patamar de AM, de I Have No Mouth, and I Must Scream. Ora, essa. Com um livro desses em mãos cheio de discursos do demônio branquelo, era obvio o que eu devia fazer a fim de minimizar a bagunça que esse livro fez na minha cabeça: explica-los com a minha gramática, a quem queira me ouvir, sobre o funcionamento da vida baseado na filosofia do incontestável juiz de todos os homens — e, assim, brincar com a cabeça do leitor também.
A guerra é trabalho do humano, é com o que ele se ocupa até a sua morte. Não argumente sobre sua profissão, estudo ou atividades que pratica — saiba que tudo isso está contido na guerra; todas as demais ocupações pertencem a ela. O porquê? Pois veja ao teu redor. Nem é necessário sair do esquadro de sua vida para constatar que ela se faz deusa e senhora de nós: onipresença e potência. De pequenas batalhas pela vaga do estacionamento, pela atenção da mãe e para poder se sentar no ônibus, até guerrilhas completas contra aquele sujeito que te atazana no trabalho, para fazer valer suas ideias e vontades ou ganhar a glória da razão em uma discussão. Vivemos para a guerra, batalhamos a vida inteira — a guerra passa a ser vida.
Vejamos então para onde aponta o cano da arma desse pensamento. A mira pode indicar uma resposta-alvo cruel. Numa guerra entre duas ou mais forças beligerantes, a deusa põe à prova a vontade do indivíduo contra o outro — e, para que essa batalha acabe, uma vontade deve ser eleita. O mais forte? O mais esperto? Quem vai saber. Um há de ganhar e outro tombar no solo. A batalha em si é trivial, ela é um meio; o que importa são as divergências que as concebem. Se essas vontades são morais ou não, na realidade isso tão pouco importa, pois, além de um ponto de vista moral não poder ser totalmente posto em teste, é irrelevante quem é o herói em luta. Isso não vai fazê-lo vencer. Assim, a vida, por ser guerra, não está se preocupando com as considerações meramente humanas sobre equidade e moral. Sua opinião é brutalmente desprezada. Ela só tem olhos para as decisões do que deve vencer e do que deve perder. Isso, para ela, transcende qualquer picuinha de tentativas humanas de fazê-la diferente da mãe, filha e irmã gêmea da guerra.
Acalme-se, pois tem mais. A melancolia dessa ideologia não acaba por aí. Entre os dentes do ex-padre Brown saiu algum resmungo. Holden estava com certeza louco.
— “É por isso que a guerra perdura?”
O juiz negou. A guerra perdura porque os jovens a amam e os velhos adoram ver essa loucura que há neles. Basta ver as crianças. Nascemos para jogar. Elas sabem que isso sempre será mais divertido e complacente do que qualquer outra coisa. Sabe o que mais elas sabem? Um jogo pelo jogo não tem graça; a graça e a alegria em jogar estão no valor que está em risco, e é isso que traz ao jogo o seu mérito de ser amado. Todo jogo envolve a humilhação e a derrota contra o apreço pela vitória. Algumas vezes, estes são os valores em jogo; outras vezes, as apostas de um truco, reconhecimento mundial, diplomas, vagas no estacionamento, o assento no ônibus e o afago da mãe. Veja, a guerra também é jogo. Jogamos eternamente as brincadeirinhas da guerra, não pela batalha, não pela briga, tampouco pelo sangue, mas pelo valor que está sendo disputado. O que perderei se não ganhar? Ou, o que posso levar se não perder? Brincamos de trincheira não porque é legal, brincamos de guerra porque precisamos do valor que ela está apostando. A vida também é um jogo que devemos continuar jogando, por mais que uns decidam parar.
Depois de suas palavras, o ex-padre nada mais disse.
— “Nihil dicit.” — o juiz encerrou com o termo que, no judiciário, significa “E ele não disse nada”, usado para indicar que o réu não apresentou uma contestação.
Minha mão fica com calos ao escrever estas palavras ásperas. O juiz não está errado. Mas talvez eu, na minha santificada positividade, diga que isso não o faz totalmente certo. Podemos escolher certas batalhas. O botim vale tanto a pena? Os danos podem ser diversos por tão pouco. A vida melhor, em sua crueza, talvez esteja em selecionar bem as batalhas e ter bons companheiros de trincheira. Buscar abrir mais frentes de ataque para quê? É fato que muitas vezes não podemos escapar de um confronto, mas há intervalos de paz.
Repare que já estamos tão acostumados a essa guerra que não a vemos mais — e isso nos permite dormir. A natureza da guerra anda com a da humanidade. O ser humano criou por si só sua honra e moral, leis para impedir crimes de guerra na vida. Todos têm os seus padrões, e sabemos quando os estamos corrompendo. Temos o poder do conhecimento do bem e do mal; o que ocorre a seguir não é culpa da guerra. Deixo aqui minha observação sobre a necessidade de, já desde novos, sabermos que é preciso afrontar o problema pela frente e não ignorá-lo ou repassá-lo como responsabilidade do outro. Isso apenas aprofunda ainda mais a ferida da moral na atualidade. É uma questão de não oferecer mais do que a batalha principal pede — senão, vira carnificina. Mas deixo de falar sobre o juiz desde já. Como disse o ex-padre, ele vai ouvir você. Tem ouvido de raposa.
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