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EM UM FIO DE NAVALHA

  • Clara Lopes e Laura Silva - MC
  • 14 de mai.
  • 19 min de leitura

Já era tarde da noite quando os sons começaram.

Há semanas estávamos naquela casa, encolhidos em um canto na parede, apenas ouvindo o constante marchar dos soldados. Eu já havia perdido a noção do tempo. A única coisa que garantia a mim mesma que eu ainda estava viva era a fome e o medo. Duas coisas que nunca me abandonavam, mas naquele momento, pareceram se enraizar em mim a tal ponto que meus sentidos ficaram entorpecidos.

Papai se aproximou. A luz fraca de uma vela era o bastante para que eu visse a preocupação em seus olhos escuros, mas também uma determinação implacável. Ele afagou meu ombro, mas o toque pareceu mais distante do que de fato era.

- Eles estão aqui – sussurrou, levando o dedo aos lábios, indicando que era para permanecer em silêncio. Ainda que eu quisesse, não conseguiria falar. - Vou nos tirar daqui.

A porta da frente foi sacudida com violência. Ouvi os soldados gritando, ordenando que fosse aberta, socando a madeira envelhecida. Pude ouvir quando ela cedeu e pude sentir o chão tremer com seus passos pesados.

Um gemido escapou por entre os meus lábios. Papai foi ágil em cobrir minha boca com a mão, mas era tarde. Houve silêncio na casa.

Quanto tempo eles levariam para descobrir nosso esconderijo no único quarto e único cômodo além da sala? Papai me agarrou e senti meus pés tocando os chãos, mas eu mal conseguia fazê-los obedecerem. Ele abriu a porta do alçapão e me colocou lá dentro, no escuro. Apenas ouvi o som de algo quebrando antes que ele entrasse comigo e fechasse a portinhola acima de nós.

As vozes pareciam cada vez mais altas enquanto percorríamos o túnel subterrâneo. Papai me abraçava enquanto me forçava a andar rápido. Não era possível enxergar nada, mas ele conhecia o caminho – já havia se preparado várias vezes para um momento como esse.

Finalmente, um facho de luz brilhou acima de nós. Papai estava erguendo a tampa do outro alçapão, tentando averiguar se era seguro. Ouvimos vozes e passos próximos demais, reais demais. Os soldados haviam entrado no túnel.

A iluminação da lua cheia incomodou meus olhos depois de tanto tempo no escuro, mas não pareceu afetar papai. Ele saiu, puxando-me em seguida e fechando a tampa, e correu comigo em direção ao bosque.

Nos escondemos atrás de uma árvore e esperamos. Eles saíram do túnel e tentaram nos achar com suas lanternas. Enterrei o rosto no ombro de papai.

Os alemães penetraram no bosque, iluminando o local. Nós nos abaixamos, na esperança de que as moitas nos oferecessem alguma proteção. A posição dos galhos também estavam a nosso favor, inclinando-se para nós como se quisessem nos encobrir.

Uma das lanternas iluminou o ponto da árvore em que estávamos antes de nos abaixar e não consegui respirar. Após alguns minutos, eles se dispersaram e suas vozes se tornaram abafadas, até desaparecerem.

Papai levantou devagar e esperou para ver se era seguro. Então ele me puxou para si, com mais delicadeza dessa vez, e subiu no galho mais baixo da árvore. Ele gesticulou para que eu o seguisse. Fui até ele, arrastando os pés enrijecidos, que logo passaram a flutuar quando ele me carregou e me colocou ao seu lado.

Entendi que ele queria se esconder no topo da árvore e me obriguei a não ser um fardo. Consegui me movimentar o bastante para acompanhá-lo, mas não sem receber muita ajuda. Todo aquele cenário me apavorava. Eu quase podia ouvir os alemães retornando e nos pegando no flagra, mas isso não aconteceu e chegamos à copa da árvore. Aninhei-me junto ao seu corpo, que repousou a mão firme em meu ombro.

Ele era a única família que me restara e eu era a dele. Mamãe e meus dois irmãos mais novos haviam conseguido migrar para os Estados Unidos com a ajuda de tio Valter e sua esposa. Mas não havia dinheiro suficiente para mais duas pessoas, então papai e eu tivemos que ficar. Eu, porque era a integrante da família que menos tinha traços judeus evidentes, e papai ficara para cuidar de mim.

Eu não sabia se eles haviam conseguido fugir ou se morreram no caminho, mas a dor da separação era a mesma. Tio Valter possuía certa riqueza e nos deixou sua casa, onde havia construído um sistema de fuga para emergências, e desde então papai se preparou para uma situação como esta.

Um vento frio balançou as folhas da árvore e me encolhi ainda mais, deitando a cabeça no peito dele.

Ele sempre fora um homem sereno, mas eu não conseguia entender como ele podia se manter assim nesse momento. Sua respiração era suave e eu podia ouvir seu costumeiro sussurrar. Ele estava rezando.

Papai sempre fora íntegro e fiel, o homem mais bondoso que eu já havia conhecido. Por que coisas tão terríveis aconteciam com ele?… conosco? Por que os alemães querem nos exterminar? Por que nos tratavam com desprezo e brutalidade, por que querem nos destruir sem nem nos dar a chance de defesa?

Quando o mundo havia se tornado um inferno?

Aos olhos deles, éramos como insetos imundos. Eles não percebiam a verdade, mas eu conseguia vê-la tão claramente como eu podia ver suas armas – éramos seres humanos como eles. Se é que ainda existia alguma humanidade neles.

Eu estava quase mergulhando em um sono turbulento quando o som de um avião sobrevoando o céu fez um tremor percorrer meu corpo. Os frequentes bombardeios em função da guerra não eram mais novidade para ninguém, mas estar longe do abrigo de casa fazia ondas de medo quebrarem em mim. Papai apenas afagou meu braço coberto pelo casaco com o distintivo da estrela de Davi, aquela que nos denunciava. Pensei em tirá-la, mas seria arriscado. Se descobrissem que eu era judia e que não estava usando-a, a sentença de morte estaria assinada – a minha e a do meu pai.

O dia amanheceu nublado e uma neblina densa nos envolvia. Apesar disso, ele não fez menção de descer, mas permaneceu imóvel, ainda movendo os lábios silenciosamente. A dor em meus músculos parecia insuportável, e a queimação em minha garganta seca e em meu estômago vazio não era mais amena. Os alemães fizeram diversas buscas no território abaixo de nós no decorrer do dia, mas não nos encontraram. Aviões de guerra tornaram a voar próximos a nós e era possível ouvir os bombardeios ao longe.

Passamos todo o dia assim, estáticos, apenas ouvindo e temendo. Até que, ao cair da noite, papai se moveu pela primeira vez. Seus ossos estalaram.

- Não faça barulho, Miriam – ordenou. Eu assenti, incapaz de falar.

Descemos da árvore com cuidado, mas a fraqueza atrapalhava a minha destreza. Quando alcançamos no chão, ele me puxou para si e começamos uma longa caminhada noturna aos tropeços.

Andamos por duas noites inteiras, nos escondendo durante o dia no topo das árvores e comendo os frutos que lá haviam – se houvessem. Os alemães patrulhavam as redondezas, o que nos impedia de agir com liberdade. Eu pude perceber que papai estava tenso. Eu sabia que ele tinha um plano, mas então por que não parava de remexer as mãos e olhar nervosamente para frente? Parecia que enfim algo havia perturbado sua paz.

Papai percebeu que eu o observava e não tentou esconder sua agitação, como normalmente fazia. Em vez disso, ele me encarou com seriedade.

- Escute Miriam, hoje à noite vamos chegar à cidade.

Arregalei os olhos. O pânico cresceu em mim.

- Vamos voltar? - minha voz não passava de um sopro, mas ele entendeu minha preocupação.

- Chegaremos em outra cidade, onde seremos desconhecidos. Vamos passar uns dias lá para tentar conseguir dinheiro. Precisamos juntar apenas o bastante para tirar você daqui.

Agarrei seu casaco surrado, desesperada.

- Não posso ir sem você.

Suas mãos envolveram meu rosto sujo e encovado.

- Não permitirei que morra. Haverá um futuro para você enquanto eu viver.

Lágrimas inundaram os meus olhos. A imagem dos soldados veio à minha mente e não pude deixar de sentir um remorso destruidor. Tudo por causa deles, tudo por causa da sua crença de que eram superiores a nós. Apenas porque eram arianos e nós éramos podres, o motivo da desgraça que eles mesmos trouxeram sobre si.

Papai olhou ao redor, atento. A noite estava próxima. O momento havia chegado.

Caminhamos em silêncio durante horas, usando a escuridão da noite como um manto contra os nazistas. Felizmente não tivemos nenhum encontro com eles, mas fomos obrigados a nos esconder algumas vezes. Quando amanheceu, estávamos diante da civilização alemã, observando o comércio funcionando a todo vapor.

Não conseguimos nos disfarçar na multidão – as pessoas viam os símbolos em nossos casacos e nos encaravam com nojo, desprezo e ódio mortal. Alguns rosnavam ao nos ver passar, mas a maioria evitava olhar para nós e mantinha distância, como se pudéssemos passar alguma doença.

- Não vai conseguir trabalho aqui, abba – falei baixinho. Papai não respondeu, mas seguiu em frente até encontrar um homem de meia-idade que nos fuzilava com o olhar. Ele trazia consigo um jumento, que puxava uma carroça cheia de alimentos que fizeram meu estômago se contorcer.

- Com licença, preciso lhe pedir um favor. Eu imploro que nos leve na carroça. Posso lhe pagar… - Papai retirou do bolso nosso último marco. Mas, de súbito, o alemão tomou a moeda de meu pai e esbofeteou-lhe o rosto.

- Ladrão imundo! - rugiu, cuspindo nos sapatos de papai. - Como ousa falar comigo e ainda pedir para andar na minha carroça?!

Minha garganta ficou seca.

Eu podia ver guardas mais adiante, abordando uma família de judeus. Eles tentavam dialogar com os nazistas, mas em vão. Foram pegos, com os braços nas costas, e forçados a caminhar – cujo destino eu já sabia e temia: para o trem, que os levaria para a morte.

As pessoas, como eu, observavam o tumulto. Pude ouvir vários alemães ao nosso redor darem graças a Deus por permitir que a Alemanha fosse limpa do impuro sangue judeu – mal sabiam eles que seu país estaria manchado com nosso sangue para sempre. Alguns fizeram o sinal da cruz, outros murmuraram uma prece para que fossem mortos o mais breve possível.

Aquilo me encheu de medo e indignação. Como eles podiam louvar a Deus por isso? Como se Deus estivesse feliz com o extermínio do seu povo, o remanescente de Judá. O mesmo Deus que ordenara aos seus servos amar ao próximo como a ti mesmo não aprovaria o comportamento nazista. Como eles podiam ser tão cegos?

Puxei a manga do casaco de abba, implorando para ir embora. O homem que roubara nossa moeda havia ido embora, provavelmente a procura de guardas para nos denunciar. Os soldados que escoltavam a família judia não estavam tão distantes. Papai voltou a andar mecanicamente, se misturando à multidão, com a mão no peito sobre a estrela de Davi. Meu distintivo parecia brilhar mais que o próprio sol, chamando a atenção de todos para mim. Apertei o casaco em meu corpo esquelético e mantive a cabeça baixa, torcendo para que meu cabelo escuro tornasse a estrela menos evidente. Os panfletos exibindo o rosto de Hitler e as propagandas nazistas me assombravam a cada esquina, lembrando-me constantemente que estávamos sendo observados. O regime via e sabia de tudo. O anúncio que escutei há dois anos ainda ressoava em minha mente: “vamos libertar a Europa da ameaça do judaísmo e do bolchevismo”. Eu me lembrava de quando minha mãe olhou em meus olhos e contou sobre o desaparecimento dos meus amigos. Na época eu não conseguia entender, mas agora eu sabia que haviam sido levados para o próprio inferno.

As portas das lojas exibiam recados enormes proibindo a entrada dos judeus e desobedecer essa ordem – e qualquer outra– era mortal.

- Vamos morar nas florestas – sussurrou papai, assim que nos afastamos da multidão. Agora estávamos em uma rua particularmente deserta, não mais afastada do bosque de onde viemos. - Não há lugar para nós aqui. Mas conheço alguém que vai cuidar de você.

- Eu não entendo – murmurei, sentindo a ameaça da separação velada em sua frase.

- Escute, Miriam. - Papai segurou meus ombros e me olhou nos olhos. - Seu tio tinha um amigo confiável. Ele me disse que, quando não pudéssemos mais nos esconder, deveríamos buscar refúgio lá.

Assenti.

- Mas ele não estaria em apuros se nos refugiássemos lá?

- Sim. Especialmente se eu ficasse com você. Eu não conseguiria fingir que sou alemão nem se nascesse de novo, mas você sim.

- Você pode ficar escondido.

- Nos bosques. Mas você ficará segura com uma cama para dormir e um teto para te proteger.

- Quando vamos partir?

- Agora mesmo.

Papai voltou a andar e eu o segui, ainda tentando processar a informação. Eu precisava me conformar, eu precisava obedecer. Estávamos cada vez mais nos distanciando da cidade e nos aproximando do bosque de onde saímos e finalmente ficamos livres dos panfletos, dos olhares, da ameaça constante.

- Coma, minha filha.

Quase não acreditei quando vi um pedaço de pão sair do bolso de papai. Eu não me lembrava qual havia sido a última vez que ingeri algo. Peguei de suas mãos e comecei a comer lentamente, saboreando cada mordida, mas em pouco tempo não restara mais nada.

- Onde conseguiu? - perguntei, começando a me arrepender por não ter divido com ele. Na hora, meu estômago não me permitiu pensar nisso.

- Consegui pegar discretamente quando passamos pelas barracas de alimento. - Papai hesitou ao dizer isso. Ele não gostava da ideia de roubar – a Lei de Moisés nos condenava quando a isso -, mas eu não conseguia imaginar Deus punindo-o por alimentar sua filha.

Nossa caminhada silenciosa perdurou muito tempo e só paramos para dormir, no topo das árvores novamente. Quando amanheceu, voltamos a andar.

Minhas pernas tremiam com o esforço. Mais de uma vez achei que desmaiaria de fraqueza, mas o apoio dele me sustentava até a sensação passar. De acordo com ele, estávamos próximos da casa do amigo de tio Valter e ele me ensinou tudo sobre o caminho que percorremos.

A vegetação estava ficando mais densa e tínhamos que afastar os galhos das árvores para abrir passagem. De repente, quando papai foi afastar um deles, um soldado alemão apontando uma arma para nós surgiu.

Perdi o ar.

- Renda-se, judeu.

O soldado encarava ele, sem me notar. Eu estava escondida atrás de seus ombros e da vegetação, de forma que ele ainda não havia me visto. Papai empurrou-me discretamente para trás e gesticulou como se me mandasse ir embora.

- Eu não irei correr para buscar abrigo, senhor. Faça comigo o que achar melhor.

Eu entendi o recado. Eu não podia abandoná-lo, mas o medo traiu minha lealdade e eu me afastei rapidamente, tentando não fazer barulho, rezando para que papai conseguisse se salvar e me encontrasse.

Permaneci parada após sair do bosque, estando em campo aberto, aguardando que ele viesse e me abraçasse. Mas ele não veio. E a única coisa que fez meus pés correrem para longe foi o som de tiros ecoando da floresta. Lágrimas brotaram em meus olhos e meu coração se partiu de dor e desespero ao notar que estava sozinha, sem perspectivas, e sem o meu amado pai.

Corri aos tropeços, tentando me lembrar da sua orientação em meio à nebulosidade dos meus pensamentos. Finalmente, avistei uma fazenda próxima de onde eu estava. Eu não tinha mais nada a perder, então fui até ela.

Espiei a área por detrás da cerca branca e deparei-me com um homem abatendo um porco. Eu me encolhi diante da cena e meu grito assustado me denunciou, apesar de eu o haver abafado com a mão.

O homem, claramente um alemão loiro de meia-idade, cravou os olhos azuis em mim. Todos os meus instintos me incitaram a fugir. Talvez não fosse má ideia morar nos bosques. As árvores eram mais gentis que os humanos.

Mas era tarde. Ele recarregou a arma e caminhou até parar a apenas alguns passos de mim.

- Quem é você?

Meu sangue gelou. Revelar nomes não era inteligente. Desviei o olhar do homem à minha frente, sem coragem de encará-lo.

- Me disseram para procurar abrigo na sua casa – respondi, com a voz mais firme que consegui.

Ele me olhou da cabeça aos pés, analisando-me.

- Você é judia?

- Tio Valter disse que você era confiável – sussurrei temerosa, torcendo para que a menção do meu tio o fizesse compreender a situação.

Ele assentiu. Não pareceu gostar, afinal, quem gostaria de sentenciar sua própria vida abrigando uma menina judia e desconhecida?

- Onde está o seu pai?

- Foi pego – falei, reunindo todo o meu esforço para que minha voz não falhasse. O homem diante de mim não podia achar que eu estava tão fraca ou inútil que não valesse a pena abrigar. - A última coisa que me disse foi para que encontrasse o senhor.

- Então você está sozinha. Miriam, não é?

Engoli em seco. Ele sabia o meu nome.

Fiz que sim com a cabeça, sem escapatória.

- Venha comigo. Já vou lhe avisando, minha mulher não gosta de judias, então não abuse da sorte. Não se aproxime da minha filha. Nunca saia de casa. Obedeça sem questionar, não ouse levantar o tom de voz. Faça o que lhe for mandado e não pegue mais do que lhe for oferecido. E a partir de agora, seu nome será Greta.

Apenas concordei com tudo, dando o meu melhor para acompanhar seus passos rápidos. Ele abriu a porta da casa e entrou, indicando para que eu fizesse o mesmo. Vi uma mulher de costas para nós, agachada e esfregando o chão. Ela se levantou quando percebeu que não estava mais sozinha.

Ela era bonita, mas tinha uma expressão nada amigável. Ela demorou o olhar em mim e seu cenho franziu de frustração.

- Quem é ela?

- É a sobrinha de Valter.

- Uma judia imunda! - indignou-se a mulher.

- Um banho resolverá esse problema. Dê-lhe algo para comer antes que desmaie.

- Nossa comida já é escassa – ralhou ela. - Não podemos alimentar mais uma boca.

O homem respirou fundo, perdendo a paciência.

- Faça o que estou te mandando, mulher.

O homem saiu, deixando-me sozinha com a senhora da casa. Ela bufou, despejando todo o seu ódio contra mim através do seu olhar.

- Venha comigo, garota miserável.

Segui a mulher pelos corredores iluminados e adornados, temendo o pior. Ela me levou até o maior banheiro que eu já vira em toda a minha vida e me indicou o que fazer. Depois ordenou que eu fosse à cozinha para comer antes de começar as tarefas como sua serva doméstica.

A senhora havia me dado roupas limpas e imaginei que eram de sua filha. Eu as vesti e fiz uma breve oração sem esperança antes de sair do banheiro e ir até a cozinha.

Havia um prato com um pouco de carne de porco. Ela sorriu para mim de um jeito sinistro.

Senti um nó na garganta enquanto me sentava à mesa. Eu nunca havia comido carne de um animal não-ruminante antes, e não consegui encarar o alimento. Meu estômago roncou, mas minha consciência pesava.

- É melhor comer, judiazinha. Não servirá para nós se morrer de fome. E então não fará diferença denunciá-la aos soldados ou mantê-la escondida aqui. Seu destino será o mesmo.

A ameaça penetrou fundo em minha alma e ignorei o remorso que se instalava em mim. Satisfiz minha fome com ferocidade e aguardei pelas próximas ordens.

Passei o resto da tarde limpando a casa, esfregando o chão, objetos valiosos e mobílias. Quando já era noite, a mulher mandou que eu fosse para um quarto no andar de cima e a aguardasse levar o meu jantar.

Não foi difícil encontrar o cômodo. Era apertado e escuro, diferente dos outros quartos que limpei. Estava fedendo a mofo e tudo o que havia nele era uma cama velha e pequena. Fiquei grata por ter um lugar onde repousar a cabeça e me deitei, sentindo dores por todo o corpo, especialmente onde a mulher havia atingido com violência quando não aprovava o meu trabalho.

A ausência de papai pairava como uma nuvem densa e tempestuosa sobre mim. Encolhi-me como uma semente e chorei.

Fui interrompida por uma voz que não conhecia.

- Eu imaginei que estaria aqui.

Sentei-me de súbito, secando as lágrimas. Uma menina um pouco mais baixa que eu estava de pé na entrada, iluminando o quarto com uma vela. Ela fechou a porta e se aproximou.

- Não se assuste. Sou Liselotte, mas pode me chamar de Lise. Soube que vai morar conosco.

Não respondi. Essa certamente era a filha dos meus novos senhores e eu recebera ordens de não me aproximar dela.

- Você não fala a minha língua?

- Desculpe, senhorita. Recebi ordens para não me aproximar da filha do meu senhor.

 - Não seja por isso. Posso ficar aqui e você fica aí. Estamos bem distantes, não concorda?

 O gesto de gentileza dela me pegou desprevenida. Há quanto tempo eu não era tratada assim por alguém fora da minha família? Eu a encarei e me surpreendi com a suavidade de seus olhos claros.

 - Sou Greta - menti, decidida a obedecer o amigo de tio Valter.

 - Você estava chorando. O que houve?

Soltei um suspiro trêmulo.

 - “Que esperança posso ter, se já não tenho forças? Como posso ter paciência, se não tenho futuro? Acaso tenho a força da pedra? Acaso a minha carne é de bronze? Haverá poder que me ajude, agora que os meus recursos se foram?” - citei. Era uma passagem do livro de Jó, que me atormentara nos últimos meses, mas nunca fora tão real.

 Lise deu um passo à frente, como se quisesse me consolar.

- Vejo que está com problemas. Você é judia, não é?

Encolhi os ombros. Eu não queria mentir, mas não era seguro contar a verdade. Ainda que ela parecesse confiável.

- O que a fez pensar isso?

- Eu estava observando a paisagem pela janela quando vi você correndo até a nossa cerca. Vi a estrela de Davi na sua roupa.

Não respondi. Não havia nada a dizer.

- Não imagino como deve ser difícil para vocês, judeus. Não acho que isso seja certo, não é justo. Nosso sangue não nos diferencia… É o que nos torna humanos. É o que nos torna iguais, como você e eu.

- Não deveria dizer uma coisa dessas – murmurei. - Não é correto falar contra o Führer. Não é seguro ter crenças que indiquem alguma rebelião. Até as paredes têm ouvidos.

- Já perdemos nossa segurança assim que abrigamos você.

Desviei o olhar, sem conseguir encará-la. Eu sabia que estava colocando a vida de Lise e sua família em risco e o sentimento de culpa me fazia ter ideias sombrias de fugir para longe, deixando-os em paz.

- Não pense que eu ache isso ruim – apressou-se em dizer, ao notar minha expressão. - É emocionante fazer a coisa certa, mesmo sob risco de morte. Estou gostando de desafiar esse governo desumano.

Era melhor mudar de assunto. Lise tinha ideias perigosas demais para uma garota da sua idade.

- Quantos anos têm, Lise? - perguntei.

- Tenho doze. E você?

- Treze.

- Temos quase a mesma idade. Fico feliz em ter você como amiga e companheira, Greta.

Mais uma vez, não consegui esconder a surpresa que sua gentileza me causou.

- Igualmente, Lise.

A menina pareceu ouvir alguma coisa e ficou tensa.

- É melhor eu ir, antes que minha mãe nos veja. Posso voltar aqui amanhã a noite, para conversarmos?

Ela não esperou pela resposta, apenas saiu do quarto às pressas, apagando a chama da vela com um sopro. Não tardou para que minha senhora entrasse no quarto com um prato de comida nas mãos. Diferente da filha, sua expressão era odiosa e amargurada.

- Pare de me encarar, judia imunda. Coma logo e não saia deste quarto. Se acordar amanhã depois que o sol nascer, se arrependerá de sonhar demais.

- Como quiser – respondi baixinho, abaixando os olhos. A mulher fechou a porta ao sair, deixando-me apenas com a pouca iluminação que vinha da janela. A diferença entre as duas era gritante e comecei a me perguntar porque Liselotte não era como sua mãe. Seria influência de seu pai, se é que ele possuía os mesmos pensamentos? Teria ela crescido com visitas frequentes de tio Valter e por isso adquirira algum carisma por judeus?

Quando amanheceu, eu ainda me sentia exausta, mas levantei de imediato. Desci as escadas com cautela, tomando o cuidado de não fazer barulho. Cheguei à cozinha, esperando as novas ordens, mas não havia ninguém. Será que eu estava atrasada? Ou havia chegado cedo demais?

E se ela já estivesse acordada e fora cumprir alguma tarefa externa, como pegar os ovos das galinhas? Fui até a sala e aproximei-me da janela, procurando algum sinal dela. O que vi me fez perder o fôlego.

Vi meu senhor conversando com cinco soldados nazistas, com minha senhora um pouco atrás. Recuei, apavorada. E para o meu terror, tive a impressão que um deles também me viu. Eu precisava sair dali, precisava correr, precisava me afastar deles o quanto antes! A urgência e o desespero me impediram de pensar direito, e antes que eu pudesse processar o que estava fazendo, me vi correndo até a porta dos fundos e abrindo-a, para então correr pelo campo em direção ao desconhecido.

Ouvi gritos ao longe, uma série de ordens para me pegarem. Haviam me visto. Era o fim, eu deveria saber. Ainda assim, pulei a cerca da fazenda e continuei correndo em direção ao bosque, mas a saia longa que a senhora havia me oferecido dificultava meus movimentos.

Os próximos acontecimentos pareceram um pesadelo, irreais demais para serem verdade. Mãos fortes e brutas agarraram meus braços, imobilizando-me. Debati-me em desespero, mas fora inútil. Outro soldado me deu uma bofetada no rosto, fazendo com que a histeria diminuísse um pouco e eu começasse a aceitar o meu destino. Eles me atingiam com violência em várias partes do corpo quando eu ameaçava fraquejar durante a marcha para o inferno e, às vezes, o faziam por pura diversão.

Após horas caminhando, sendo empurrada e ferida pelos soldados, passando por cidadelas em que as pessoas agradeciam a Deus por livrar a Alemanha de outra judia suja e lançavam insultos contra mim, chegamos à estação de trem. Um homem largo se aproximou de nós e fez a saudação à Hitler, exclamando o comum “Heil Hitler!”, o lema dos alemães.

Os soldados trocaram breves e grosseiras palavras com o homem, mas mal consegui escutar. Um zumbido terrível ecoava em minha mente e minha visão ficava cada vez mais nebulosa. Fui jogada no chão apenas para ser brutalmente levantada pelo desconhecido, que me forçou a andar até o trem, onde me descartou em um dos vagões de carga.

Vários judeus estavam amontoados ao meu redor. Alguns olhavam para o vazio, com o olhar perdido, entre a vida e a morte. Mulheres chorosas consolavam seus filhos aos prantos, alguns homens recorriam à oração, outros batiam nas paredes como se pudessem fazê-las ceder. E eu me encolhi em um canto, o mais isolado que a aglomeração fétida de judeus me permitia. Abracei os joelhos e pensei em minha família. Afinal, será que minha mãe e meus irmãos estavam vivos? Será que eu os encontraria no inferno, para onde eu estava indo? Ou será que eles estavam construindo uma nova vida, aguardando com esperança para se reencontrarem comigo? Esse dia nunca chegaria, eu sabia. Pensei em abba e em como ele tivera um destino melhor que o meu. Fora um erro fugir e deixá-lo lidar com os soldados. Poderíamos ter morrido juntos, rapidamente.

Perdi a noção do tempo em que fiquei naquela posição, naquele lugar, com aquelas pessoas e o cheiro que só piorava. Meus pensamentos pareciam dormentes e meu corpo, fraco demais para fazer qualquer movimento.

E então uma luz ofuscante me obrigou a fechar os olhos e mal entendi que havíamos chegado. Os soldados bateram em alguns judeus que não tinham forças para levantar e começaram a retirar os cadáveres, que não eram poucos. Senti as mãos pesadas de um soldado puxando-me para fora do vagão e consegui encontrar forças para ficar de pé. O cenário com que me deparei me fez ter vontade de desistir e morrer ali, o que seria muito mais fácil.

Diante de mim havia um mundo cinzento, encoberto por fumaça e o cheiro acre de carvão queimado. Vi cercas de arame farpado, torres de vigilância com soldados armados e cães latindo furiosamente. O chão era de cascalho frio. Homens uniformizados gritavam em uma língua dura, separando os recém-chegados em filas – à esquerda ou à direita.

O frio invadiu meus ossos, penetrando o tecido fino da roupa que não me pertencia. Por algum motivo, não fui separada. Talvez pela minha estatura ou pelos meus olhos atentos, um soldado me empurrou para o grupo de "apto para o trabalho".

Os dias seguintes passaram como um borrão, sem vida e sem cor. O campo era um lugar onde o tempo não existia. Havia apenas horas em pé, o corpo gelado, o estômago sempre vazio. Eu acordava antes do amanhecer, enfileirada com outras mulheres e meninas, contada, recontada, insultada. Recebia um pedaço de pão duro e uma caneca de líquido morno, sem sabor. Depois, trabalho forçado — transportar pedras, cavar trincheiras, limpar corredores sob os olhos de soldados armados.

No barracão, dormia em uma ripa de madeira com outras quatro meninas. As conversas eram sussurros, e as amizades, silenciosas. Ninguém prometia nada, nem o amanhã. Mas eu observava, memorizava rostos. E aquilo me tornou resistente à dor, insensível ao medo. Essa mudança foi comprovada em um certo dia, quando estava trabalhando nos campos e vi um soldado abordando uma mulher emaciada pela fome, batendo nela por não ter mais forças para manejar os instrumentos de trabalho. E naquele momento, ver uma mulher indefesa do meu povo ser tratada daquela forma fez com que uma ordem oposta ao que estávamos vivendo naqueles tempos ressoasse aos meus ouvidos.

Ame o teu próximo como a ti mesmo.

Como a ti mesmo.

E eu decidi obedecer.

Caminhei com passos firmes até o soldado e puxei a mulher para os meus braços, livrando-a do seu agressor. Eu vi a fúria em seu olhar, mas pela primeira vez, não abaixei os olhos. Ele agarrou o meu queixo bruscamente, machucando-me.

- Como ousa?

Ele me jogou no chão e não me esforcei para amenizar o impacto da queda. Ergui a cabeça apenas a tempo suficiente para ver uma espingarda apontada para mim.

Eu estava em paz. Havia feito a coisa certa. Eu estava caminhando pela vida como em um fio de navalha por muito tempo; finalmente meu destino decidira me encontrar.

Fechei os olhos e apenas aceitei.


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