top of page
  • Instagram

Semana 6

ago 31

6 min de leitura

0

2

0

Acordou antes do galo cantar, com a mesma dor de cabeça de todos os dias. Apesar da dor, se arrumou e tomou café com pão, sem nada, a melhor refeição que podia se permitir com o salário irrisório que recebia a cada mês. Pensou em se despedir de sua mulher, mas não depois da briga de ontem, e, em seguida, se pôs a caminho do trabalho. A vida em uma cidade tão pequena era muito difícil, demorava eternidades para ir e voltar da fábrica: a caminhada até o ponto era longa, pois o caminho era empoeirado e pedregoso, o ônibus sempre atrasava e o retorno para casa na escuridão que banhava as ruas era ainda mais insuportável. Além disso, tinha o péssimo hábito de passar tempo demais no bar da cidade com os parças do trabalho, sempre recebendo sermões da esposa por chegar em casa muito além da hora que um homem casado deveria. Sentia-se preso numa vida de repetições, críticas e desperdícios, sempre exausto pelo serviço, pelas críticas e pela sensação de culpa que sentia por não tratar sua mulher com o respeito que, em breves momentos de reflexão, achava que ela merecia. E talvez também pelo álcool, mas ignorava essa ideia após uma ou duas (ou três?) garrafas da bebida genérica que o garçom lhe trazia cada noite. “Às vezes, o homem prefere o sofrimento à paixão.” - Fiódor Dostoiévski Era segunda-feira. Acordou, com a mesma dor de cabeça de todos os dias. Apesar da dor, se arrumou, comeu e foi ao trabalho. A caminho, ouviu um som familiar: um pequeno canário cantava sobre o telhado do barraco em frente ao ponto de ônibus. Era um canto que não ouvia desde que a fábrica foi construída, em seus tempos de moleque, quando ainda morava com seu avô. O ônibus chegou e o pássaro deixou de cantar. Embarcou e, no caminho, se deu conta que o canto fez sumir sua dor, que já durava vários meses. No trabalho, só conseguia pensar no canto do pássaro que viu de manhã. À noite, em meio a garrafas e altas conversas, percebeu que havia esquecido como cantava o pássaro, mas decidiu seguir bebendo, como de costume. Voltando para casa, passou por um pequeno e decadente chalé onde uma senhora estava sentada do lado de fora, em uma antiga e desgastada cadeira de balanço. Os dois trocaram olhares e ele decidiu seguir andando, mesmo tendo a leve impressão de que a velha ainda o observava enquanto caminhava. No dia seguinte, a dor voltou. Apesar do incômodo, se arrumou, comeu e foi ao trabalho. No ponto de ônibus, enquanto esperava o novamente atrasado transporte, procurou o pássaro, mas não ouviu uma única nota da melodia nostálgica que tinha ouvido ontem. Alguns minutos depois, o ônibus chegou. No meio do caminho, sua aliança caiu de seu dedo e rolou para debaixo de seu assento. Pegou-a, pensou em colocá-la no dedo, mas preferiu deixá-la dentro do bolso. Após o fim de seu turno, decidiu voltar a pé, pois o ônibus havia voltado a atrasar, e, por isso, estava novamente atrasado para chegar ao lar. Passou pela mesma casa que havia passado ontem, e lá estava a mesma velha, mas, agora, com uma pequena e suja gaiola ao lado, e, dentro dela, o canário que havia agraciado seu início de semana. Sentiu um frio percorrer sua espinha e achou melhor seguir andando. Em casa, percebeu que as luzes estavam apagadas e deu graças a Deus que, pelo menos hoje, não teria que ouvir as duras palavras de sua esposa. Andou silenciosamente até a cama e, enquanto entrava entre as cobertas, percebeu que sua mulher não estava na cama. Quis se levantar para investigar os paradeiros de sua esposa, mas deu de ombros e decidiu dormir. Caindo no sono, tornou-se a ouvir o canto do pássaro. Acordou, e a dor estava mais leve. Se arrumou, comeu e foi ao trabalho. Quando saía pela porta, se lembrou do desaparecimento de sua mulher, mas se deu conta de que ela, de forma inexplicável, estava dormindo profundamente em sua cama. Estranhado, partiu para o ponto de ônibus e lá esperou. Se passaram uma, duas, três horas, mas o ônibus não passou, decidindo ir andando. Enquanto andava, decidiu pensar: sua mulher nunca esteve fora de casa naquela hora da noite, não conhecia aquela senhora mesmo tendo vivido toda sua vida naquele fim de mundo e aquele pássaro havia desaparecido da região muito tempo atrás. Sem conseguir pensar em uma única resposta para qualquer uma dessas perguntas, surgiu um novo e mais imediato questionamento: chegando na fábrica, percebeu que ela estava completamente vazia. Os portões estavam trancados e o único som que se ouvia era o do vento seco que atravessava a região, antes silenciado pelo trabalho incessante de máquinas e operários labutando. Confuso, mas também muito cansado, decidiu sentar-se e comer a marmita que levava de almoço ao invés de fazer mais perguntas. Após sua refeição, ouviu novamente o canto do canário e viu que ele tinha um pequeno papel, talvez um envelope, amarrado a sua perna. Tentou pegá-la, mas a ave levantou voo e ele decidiu segui-la. Andou pelo que pareceram alguns minutos, sem saber a exata direção em que estava indo. Não reparou quanto tempo realmente havia passado, que o dia tinha se tornado noite e que ele e o pássaro estavam de volta à cidade. Seguiu andando, adentrando cada vez mais profundamente o município, até que uma buzina de carro o rompeu de seu transe. De novo, estava confuso. O pássaro havia desaparecido, não entendia exatamente como tinha chegado lá, e vagamente reconhecia a rua onde estava. Virou de costas, tentando tomar conhecimento de seus arredores, e cruzou olhares novamente com a velha que tinha o pássaro no dia anterior. Ela seguia um ritmo hipnótico em sua cadeira de balanço, tal como aquele grande relógio de pêndulo que seu avô chegou a ter. Concentrado no movimento da cadeira e repentinamente envolto em um turbilhão de lembranças que pensava ter esquecido, sentiu suas pálpebras pesarem e caiu no sono. Acordou, e a dor de cabeça estava mais intensa que nunca. Se arrumou, comeu e foi ao trabalho. Saindo pela porta, viu que havia recebido uma carta enviada pela empresa que administrava a fábrica. Abriu o envelope e leu o conteúdo da carta. Tinha sido demitido. Não entendia o porquê: a carta citava um corte de trabalhadores por problemas no fechamento de contas do seu setor. Mas por que ele? Ele, que diligentemente havia ido todos os dias ao trabalho, nunca reclamou das condições, do salário ou do calor. E, em sua indignação, se deu conta também que a carta não mencionava nada sobre o fechamento da fábrica. Se dirigiu ao ponto de ônibus, para ir à fábrica averiguar o que estava acontecendo, e lá esperou, mas o ônibus, de novo, não passou. Não sabendo o que fazer nem para onde ir, foi para o bar, onde passou seu dia buscando esconder sua raiva, indignação e vergonha entre latas e garrafas. Enquanto bebia, percebeu que não se lembrava como havia chegado em casa ontem à noite, e nem o que havia acontecido naquela hora. E decidiu que essa noite iria investigar o que aquela velha queria com ele. Horas se passaram, o Sol se pôs e ele, fortemente embriagado, se levantou. Tentava andar, mas tropeçava e caía toda vez que dava mais que alguns passos em linha reta. Com muito esforço, chegou até o acabado chalé da velha para ver que ela e o pássaro estavam conversando, em uma língua que não conhecia (embora não conhecesse muitas línguas). Lentamente, a conversa passou para o português que ele bem sabia, e, assim que entendeu o tema da conversa, sentiu sua pressão despencar vertiginosamente e desmaiou. Acordou, muito mais tarde que de costume, e já não sentia dor. Se levantou da cama com as mesmas roupas que vestia ontem. Não se arrumou. Não quis comer nada. E não tinha mais trabalho, mas, mesmo assim, decidiu sair de casa. Foi ao bar, mas estava fechado. E, sentindo-se livre do cansaço que suportou toda sua vida, decidiu ir até ao decrépito chalé cuja aparição transtornou sua semana. Parou na calçada oposta à casa, e ficou estarrecido ao se dar conta de que já não estavam lá nem o pássaro, nem sua enferrujada gaiola, nem a velha e nem a cadeira de balanço. Desconfiado, atravessou a rua para investigar a suspeita ausência. No meio da travessia, ficou espantado ao ouvir o canto do canário mais uma vez. Atônito, olhou para cima para procurar onde estava o pássaro e de repente, escutou um forte estrondo, seguido do som de vidro quebrando e de um motor falhando, até que desmaiou. Tempo depois, conseguiu se levantar do chão, atordoado, com o cheiro de borracha queimada ainda impregnando suas narinas. Coberto de terra, fuligem e sangue, se arrastou até sua casa. Aproximando-se da entrada, viu sua mulher chegando e quis correr até ela, que o beijou, acolheu e levou para dentro de casa. Ou pelo menos isso foi o que ele queria que houvesse acontecido. Lágrimas de alegria foram choradas naquela noite.

Comentários

Compartilhe sua opiniãoSeja o primeiro a escrever um comentário.
bottom of page