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As Lendas Atuais

jun 15

3 min de leitura

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Apesar da minha memória fraca, há coisas que acabo por nunca esquecer. E uma delas são as histórias e pode ser de qualquer tipo: mentirosa, real, caso de família, triste ou vivências pessoais. Uma que não consigo esquecer foi quando meus primos mais velhos me contaram um conto mineiro bizarro em plena sexta-feira da paixão em uma cidadezinha entre o nada e lugar nenhum. Se tratava de uma lenda sobre uma procissão de mortos, que vinha ocorrer todas as noites desta mesma data, e ainda me disseram que caso eu escutasse o som de uma matraca- um tipo de instrumento que parece uma tábua e que faz um som de chocalho de ferro- pela noite era para voltar a dormir, se não, pelo contrário, aquelas almas perceberiam e imploraram para entrar. Resultado? Uma criança de sete anos que passou a ter medo da páscoa até os seus onze anos.

Mas eu estaria errada de condená-los. Hoje em dia, eu não os julgo, na verdade até acho um pouco engraçado. Em uma das minhas férias de fevereiro mencionei para minha priminha sobre uma criatura metade bode e metade demônio chamada Cabra Cabriola que sequestrava crianças chatas e mal criadas pela noite para usá-las para fazer sabão. Ela só me olhou assustada e perguntou: “Mas a Cabra Cabriola já morreu, não morreu Sofia?” e obviamente eu falei que: Não. Brincadeira, eu acabei por contar que era só uma lenda e que sim, “A Cabra Cabriola morreu.” No fim, fui mais gentil que meus primos.

Achei estranho ter que falar que um monstro morreu, afinal ele nunca tinha existido antes, ao menos na realidade, pois em minha mente pueril ele já foi bem real, assim como a maldita procissão dos mortos. Todos nós já acreditamos nessas lendas, mas é triste ver que elas andam, agora sim, de fato, morrendo. As histórias velhas já não são tão contadas, apenas as principais se mantêm como uma vitrine de uma cultura que só resta a casca. Saci, Boto-cor-de-rosa e Yara são basicamente o carro-chefe dessa concha vazia. Pode olhar, em todo trabalho escolar do infantil sobre o folclore eles vão estar lá. Uma perda de oportunidade. Deviam apresentar mais lendas, afinal quem ainda hoje conhece o Uirapuru? Ou o Mapinguari? As repetições das histórias desse trio e de até outros contos internacionalmente famosos, como Chapeuzinho Vermelho e Bela Adormecida, me fez ter preconceito com livros de fantasia quando pequena, aquelas narrações já me eram enjoativas. Se para nós essas histórias já estavam meio sem sabor, agora então, para os mais novos deve ser insosso. Isso não se aplica só às crianças, existem muitos adultos que estão limitados às repetições também.

Sendo bem franca, toda essa era de decadência pode ser uma oportunidade. Seria uma chance de não só de acabar com essa repetição em que nada agrega, pois já faz muito que a atrito do tempo lixou a beleza e mensagens de tais contos, mas como abrir alas para os mitos modernos. Tais contos talvez não sejam do conhecimento da geração Y, vulgo geração Coca-Cola (é muito bom chamá-los por esse nome), mas já são relativamente conhecidos por nós. Uma das minhas prediletas, sem dúvidas, é a de Setealém, uma lenda que surgiu a partir de um relato paranormal na internet que evoluiu de tal maneira que se tornou uma lenda, e o incrível: é totalmente brasileira.

Na verdade verdadeira, várias lendas atuais chegam a tal repercussão que passam por expansões de narrativa, recebendo mais contribuições e até ganhando comunidades on-line destinadas a investigar e alimentar a história, podendo lograr, assim , a pertencer ao imaginário comum, sendo canonizadas por nossa memória coletiva como uma verdadeira lenda. Acontece que grande parte delas são de terror, então não seria moral apresentar aos pequenos (não faça isso com o seu priminho). Então, enquanto essas lendas se desenvolvem e surgem outras dos mais variados tipos, só podemos esperar o tempo e as pessoas trazerem esse renascimento cultural e posso dizer a minha prima que, ao menos, o Saci ainda não morreu.

Comentários (6)

Guest
Jul 19

BELO TEXTO, parabéns!

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Guest
Jul 19

Acho que meu marido (no caso, o contador da lenda), terá de arcar com as sessões de terapia tardia! Rsrs

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Guest
Jun 21

Como como escreve bem. Parabéns.

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Tais Marra
Tais Marra
Jun 20

Uiiii!

Essa lenda da Procissão das Almas também povoou meu imaginário.

E nada melhor do que eu, agora no papel de mãe, alimentar o “trauma” nas minhas filhas rsssss

Se não fosse assim, qual seria a graça?

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Guest
Jun 20
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Adorei

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Guest
Jun 20

Parabéns mocinha. Texto muito maduro...

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