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A Lei do Tombo

jun 30

4 min de leitura

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Imagino que seja quase um evento já predefinido nos destinos dos mineiros, principalmente dos belo-horizontinos: sacar um ou dois dias de vida para ir rever nossa velha capital, Ouro Preto. Afinal, não precisamos de muito tempo para rodar a cidade toda, um par de dias, e pronto, conhecemos os principais pontos dessa máquina do tempo. Contudo, no caso de um visitante que queira observar mais ou, quem sabe, tomar o máximo de cafés, bebidas quentes ou quitandas que seu corpo logre digerir, talvez um terceiro dia não caia mal.

E não importa se o visitante já esteve lá três ou quatro vezes (eu especialmente já fui cinco), parece que sempre existe mais uma curva pintada com ouro ou um cacho do cabelo de um santo que não foi percebido antes. E caso o turista vá mais uma vez depois, ele poderá descobrir mais um anjinho escondido na arte barroca ou talvez uma malha do tecido de uma pintura despercebida, mas, também, um caminho de paralelepípedos de pedra que leva à paisagem de umas certas colinas maciças de veludo verde. Então, na via das dúvidas, aconselho pensar em próximos passeios para lá. Nunca se sabe o que passou debaixo de nossas vistas.

Um espetáculo de sabores para os olhos, de cheiros doces para a pele e de notas antigas e alegres para o paladar. Era essa a sinestesia que passava em mim; o antigo é minha paixão, até ver algo que puxou o tapete sobre os meus pés: uma “casa” de época que ficava sobre um morrinho, ela estava na carne viva, tijolos expostos, lascas de pintura dissolvendo em pó, uma rachadura tão grande que a dividia em duas partes. Realmente, cena de dar dó, parecia que a qualquer momento podia virar parte do morro. O intrigante: nenhuma placa ou sinalização de venda, reforma ou de demolição. Nada. Literalmente uma casa ao tempo. O motivo: a casinha era tombada como patrimônio histórico.

Lembro-me de ter aprendido em algum ano do Fundamental I sobre o tombamento de patrimônios materiais. Explicando, seria todo bem tangível que faz parte de uma cultura ou da história de um determinado local, sendo como testemunha de seu passado. Acontece que não só a casinha estava tombada, mas ela também estava caindo. Mas também pudera, a capacidade humana de transformar a boa notícia em mau agouro nunca deve ser subestimada. Um recurso tão nobre e importante como o tombamento, que veio para proteger e conservar tais bens, acaba por encontrar-se metamorfoseando num ser monstruoso.

Toda burocracia que um bem material passa a ser considerado patrimônio não está escrita, ou melhor, está sim, no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT). Apesar de toda aparente sensatez e respeito a ditos materiais expresso na Lei nº 25/1937, que parece viver em um mundo Inteligível, é expresso só em sombras deformadas em nossa realidade sensível e corrupta. A tal lei e seus artigos acabam criando uma grande dependência dos patrimônios com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), em que os bens não podem ser destruídos, reparados ou reformados sem a aprovação deste. E caso o proprietário do edifício, por exemplo, solicite permissão para fazer uma manutenção, o processo de aprovação vai ser incrivelmente burocrático, demorado e caro.

Primeiro o Iphan tem que aceitar a solicitação, e ele não vai ter pressa de te dar uma resposta. Depois, caso ele aceite, o instituto vai pedir uma odisseia de documentos que vai desde pesquisas arquitetônicas históricas, séries fotográficas, descrições minuciosas de detalhes e uns quatro tipos de plantas diferentes. E se o proprietário não desistir até esse ponto, primeiro ele é um ser determinado, e segundo, ele vai ter que fazer mais um dossiê para a reforma com mais documentos e eternos relatórios de como será o resultado da obra. E é bom reparar que até aí a reforma nem começou, ou seja, uma pintura na parede vira uma jornada de anos, que nesse meio do caminho pode aparecer uma infiltração, um buraquinho na parede só para a história começar de novo.

E novamente a disparidade entre a lei e a prática desaba sobre nosso país. Sinceramente, o que ajuda Ouro Preto a não ter tantos bens maltratados (e mesmo assim não são tão poucos) é por se tratar de uma economia turística, mas em outros locais sem tal sorte, o resultado é ainda pior. E é compreensível a importância do cuidado para manter as características originais, mas a demora, prolongamento, inflexibilidade e rigidez bruta leva ao abandono, afinal, o patrimônio não pode ser mudado por ninguém que não seja o tempo, pois ainda não foi descoberta uma forma de multá-lo. Enquanto o trabalho prometido pela lei não for feito de maneira efetiva, séria e plausível, um tombamento pode ser sinônimo de uma queda. E espero que ou o tempo passe a ser punido ou seja feita uma reforma na maneira de ocorrer as preservações. Do contrário, a velha tradição de visitar Ouro Preto vai virar patrimônio protegido pela memória e desgastada pelo esquecimento.


Comentários (2)

Guest
Jul 01

Uma verdade bem apontado em um texto de alto nível. Parabéns!

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Tais Marra
Tais Marra
Jul 01

É por essas e outras que sempre digo às minhas filhas: aprecie as paisagens enquanto elas ainda estão lá!

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